terça-feira, 23 de junho de 2009

.dos guardiões



Hoje eu pensei pela chuva
não por ela, mas sim nela
me postei em passos firmes, cenho fechado
trazendo séculos nas rugas da minha face
e o destino de muitos sob os meus pés

Sorri enquanto o efeito devastador fazia seu papel
bebi como se jamais fosse capaz de desmentir aquilo
enquanto sorria percebi que tudo seria irreversível
escorria pela garganta, jã não haveria mais amanhã

Muito se passou, desde o tempo, até formas
tudo parecia me perturbar a atenção
minúsculos se empilhavam diante dos meus olhos
incrível como aquele simples ato, selaria minha escolha para sempre

Aqui, neste exato ponto, eu me perderia na luz
enquanto a escurão passava ao lado
já não podia prestar atenção em nada, nem em mim, nem ninguém
à ponto de achar que o mundo todo estava em camera lenta

Boneca com pernas de aranha
homem urso, mulher tigre
jamais me daria conta de os via, de que eram reais
até que se perguntaram, ele pode mesmo nos ver?

Ele escolheu a luz, guardava a escuridão
raspou de si tudo que é negro
bebia duramente pois sabia que era chegada a hora
como se o mundo estivesse sobre seus ombros naquele momento

Era mais um que fora condenado a manter o equilíbrio.


segunda-feira, 22 de junho de 2009

.dos virginianos


Do alto de mais de trinta andares, alguém atira da janela abaixo os sapatos de Calvino e a sua gravata (quem?). Calvino não tem tempo para pensar, está atrasado, atira-se também da janela, como que em perseguição. Ainda no ar alcança os sapatos. Primeiro, o direito: calça-o; depois, o esquerdo. No ar enquanto cai, tenta encontrar a melhor posição para apertar os atacadores. Com o sapato esquerdo falha uma vez, mas volta a repetir, e consegue. Olha para baixo, já se vê o chão. Antes, porém, a gravata; Calvino está de cabeça para baixo e com um puxão brusco a sua mão direita apanha-a no ar e, depois, com os seus dedos apressados, mas certeiros, dá as voltas necessários para o nó: a gravata está posta. Os sapatos, olha de novo para eles: os atacadores bem apertados; dá o último jeito no nó da gravata, bem a tempo, é o momento: chega ao chão, impecável.

.roubo descarado. TAVARES, Gonçalo

sexta-feira, 19 de junho de 2009

.da sua


O tempo, rabugento e sorrateiro como bandido de filme mexicano
parece sempre estar agindo por debaixo dos panos
e embrulhou calmamente mentiras em meio as verdades que compramos

Diga baby, deixe as palavras sair, a mente decolar
nos deixamos mesmo iludir ou toda história está travestida numa verdade muito bem contada?

Eu sei que tu um dia acreditou nisto também e nada mais disto vai mudar
nem mesmo eu me sinto seguro o suficiente para tirar os pés do chão

Andar, nem pensar, quero é poder acreditar outra vez
quero vestido longo, unhas pintadas e tua insegurança nesta noite
eu também tenho saudades de ti e de tudo o que não aconteceu
mas na minha cabeça, os meus sonhos são verdade
e eu não vou deixar a chance escapar outra vez, pode apostar.


domingo, 7 de junho de 2009

.das atitudes




I-R-R-E-V-E-R-S-Í-V-E-L
Porque o tempo, destrói tudo
Porque alguns atos são irreparáveis
Porque o homem é um animal
Porque o desejo de vingança é um impulso natural
Irreversível
Porque a maioria dos crimes são impunes
Porque a perda do amado é destruidora como um raio
Porque o amor é a origem da vida
Porque toda a história está escrita com esperma e sangue
Irreversível
Porque em um mundo perfeito
As premonições não modificam o curso dos acontecimentos
Porque só o tempo é capaz de revelar tudo
O melhor e o pior.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

.das terças



Creio que estou morto. Morto pois não sinto nada.
Tento tocar algo sólido mas não tenho consciência exata disto. Posso sentir a pressão que estimula as terminações nervosas da ponta dos meus dedos, posso sentir o áspero da tua textura suave, posso sentir a tua pele delicada. Sinto mas não consigo lembrar, não consigo entender o que exatamente estou tocando. É como se alguém tivesse se apossado das minhas mãos, dos meus olhos, ouvisse através dos meus ouvidos, lambesse a sorte da doce morte com a minha língua, inalasse teu aroma inebriante no meu lugar, um alguém, que diabos, me rouba sem escrúpulos.
É como se simplesmente eu não fosse capaz de me importar com nada, como se sempre algo existisse para me afastar dali, de qualquer um e de qualquer situação. Como se a minha pele e meu corpo pertencessem a um outro alguém, como se cada vez que me abraçassem ou me tocassem, o estivessem fazendo em outra pessoa.
Não sinto nada, não sinto a presença das pessoas ao meu redor. As vejo falar, sorrir, chorar, numa explosão de rancor e sentimentos que apenas passam diante de mim, intransigentes, me ignorando com uma veemência que ainda me supreende.
Posso tentar explicar: é como se eu fosse um mero espectro, um reflexo distorcido da minha forma, mas somente isto, nada além disto, um reflexo borrado da minha personalidade que é incapaz de se importar.
Sinto um pesar intenso só de lembrar que tu não pode ver através de meus olhos para entender o que eu digo neste momento. Provar do gosto amargo da minha maldição, se sentir condenado por milhões de anos, como estou agora, neste mundo paralelo que assola a alma e congela a razão, rasga a carne como se fosse papel, brinquedo. Às vezes até penso que seja sorte tua não saber como é, pois não sei se tu resistiria. A cada manhã é como se eu despertasse de um sonho ao lado de alguém muito especial. Mas não alguém concreto, alguém que me deparo e não julgo ser melhor ou pior, mas apenas outra parte de mim, um demônio que sonha mas não sente nada nunca.
Tentar encontrar esta consciência acho que é possível, mas parece sempre haver algo altamente disposto a me impedir. Sempre que tento encontrar respostas o destino me torce e soterra todas as lembranças de quando pareço finalmente ter encontrado alguém que me agrada, que gosto. E então que, neste exato momento, quando me olho no espelho encarando fixamente o meu ser é como se estivesse outro alguém me olhando de volta, me fazendo assim não ter coragem de contar a ninguém o que vejo através dos meus olhos. Já começo acreditar que prefiro assim, pois sei que eu que sempre manipulei bem as palavras não encontrarei desta vez uma construção capaz de definir a forma sombria que vejo, que vivo.
Através de mim este se manifesta, através dos meus olhos vejo o vazio e acho que chegarei sempre à mesma conclusão, em terças como estas estou morto.


terça-feira, 2 de junho de 2009

.da audácia II


Sou a audácia que me persegue, cárcere de mim mesmo.
A cabeça é uma ilha e coração o porto.
Sempre um porto por perto, falou.
E anoiteça o que anoitecer: o amor como audácia.
Eu estou sempre bem, disse enquanto partia com a cabeça austera, rumo ao próximo golpe de ar que nocautearia a razão.
Pôs naquele instante a solidão à frente e deu seu último sorriso, chegou ao chão impecável.
Dizem alguns que um dia escreveu no seu próprio corpo: "hey, fique jovem, jovem para sempre e invencível, você sabe quem somos e o do que somos capaz, anoiteça o que anoitecer"